passeio

– Tapioca é uma boa, não?

– Enjoada. O coco fica preso entre os dentes. Fico toda agoniada… – eu não sei quantos minutos e que tipos de argumento você usou pra não comer ali. Minha mente desviou a atenção do que você dizia do mesmo jeito que a gente se pega perguntando quanto tempo conseguiu ficar na frente de uma tevê que está no canal de vendas e a gente sabe que não vai comprar nada dali. Como alguém consegue falar tão mal de tapioca por tanto tempo? Foi nisso que eu fiquei pensando. Em como você se tornou esse tipo de pessoa .

-… Fora que por mais que você escove bem os dentes, sempre vai ter coco na sua boca no outro dia. Além do que a gente nem sabe como eles preparam…

– Sabia que as girafas são mudas?

– Que tipo de comentário foi esse, Roberto? – Você questionou incrédula. Respondi que tinha visto outro dia nessas curiosidades que vem escritas nas embalagens de gomas de mascar. “Acrescentou muito a minha vida”, você respondeu, mas, pelo menos as tapiocas ficaram em paz.

– Bem, quando eu vou ao Jardim Botânico, lá no Rio, tem um sanduíche natural muito bom perto. É uma delícia, você tem que provar um dia.

– Aqui perto também tem um sanduíche natural e é muito bom.

– Você chama “aquilo” de sanduíche? Sem contar que… – Começou de novo! Não agüento! Ainda mais com esse sotaque carioca que me estapeia a cada palavra.

 Olha – interrompi comedido, tentando não ser rude – Sanduíche natural… é a mesma porcaria gelada no mundo inteiro! – Não consegui.

– Ahn Beto, é que lá no Rio – ela aproximou o rosto do meu em um gesto que hoje, nesse exato momento, foi estranho – ele não é natural.

“Porra, como assim?”, pensei. E traído pela minha fisionomia, você piscou o olho e eu resolvi tomar isso como resposta.

Como eu me arrependo disso tudo. Mesmo sendo a primeira vez que você me chamou de “Beto” hoje, o que me fez lembrar os tempos em que tudo era mais simples. Agora, é como se você não tivesse voltado do Rio e eu estivesse conversando com uma atriz de teatro paga para ser você.

– Então – respirei fundo – tem Mac Donalds. Isso TEM que ser igual.

– Não quero nada igual. – a resposta veio em meio a uma sonora e saudável risada – Só quero algo legal. – Considerei um “eu quero algo igual, mas não tão igual. Muito menos essa porcaria”.  E se foi como pensei, eu ainda não entendi. Mas, dane-se. Eu gosto.

– Acho que sorvete é uma boa. Minha ultima tentativa. Sério.

– É. Tá ai. Boa idéia. – O silêncio apareceu por um instante no trajeto e tão logo eu quis que ele fosse embora.

– Fala das novidades de lá. – A frase saiu atravessada entre a tensão do silêncio e meu tempo de fôlego.

– Tudo muito bem. To em um grupo de teatro agora. Conheci o pessoal no Jardim Botânico. – Sabia. Existem dois tipos de atores no teatro. Os que fazem personagens aparecer e os que querem aparecer no lugar dos personagens. Já tentei essa carreira, mas, entrei em dois grupos e ambos tinham muitos desses pseudo-atores. Desisti. Um amigo meu insistiu e hoje encontrou um grupo de atores sinceros e vai muito bem. Mas, o orgulho na voz agora era a medida de suas palavras. – As reuniões são muito boas. Fazem a gente se libertar, viajar, sentir o eu do outro num grande…

– É maconha, né?

– Não!  Que preconceito! – Você relutou no tom e no olhar reprobatório. – Que mente limitada!

– Não é preconceito. Só perguntei se era maconha.

– Não…  Não é só isso. – Negar para afirmar. Coisas de mulher.

– Tem mais droga?

– Não! Quis dizer que também tem os exercícios, as dinâmicas, as passagens de texto, sabe? – Seu deslumbramento por essas coisas me apunhalava. Não conseguia prestar atenção em nada disso.

– Hum rum… E além do Jardim Botânico? Existe alguma vida pra você? – Cada palavra aqui foi exprimida numa tentativa de engolir o desinteresse que eu tinha nisso tudo. Ela pareceu não notar ou simplesmente não se importar.

– Claro! Tanta coisa… Mas, deixa isso pra depois. Fala agora daqui! Passei tanto tempo fora e as coisas parecem ter mudado tão pouco… – Não sei se você realmente queria saber essas coisas, então tentei ser bem prático ao responder para não gerar desgaste.

– Pra falar a verdade, desde que você foi embora não mudou nada.

– Dúvido.

– Na verdade, as coisas sempre mudam, mas sem sair do lugar. É que faz tanto tempo que a gente não se fala que não tem nem como saber o que é novidade.

– Entendo… Estranho, né?

– Nem fala… – O silêncio conseguiu conquistar os eternos três minutos que faltavam até a sorveteria. Ele gritava no meu ouvido milhares de coisas que eu deveria dizer a ela ao mesmo tempo que dizia que eu deveria deixar essa louca e ir embora ao mesmo tempo que falava sobre ficar e tentar ver quanto da Mariana que eu conhecia ainda restava nessa mocinha-do-cabelo-curto-e-roupa-xadrez-que-chora-quando-ouve-los-hermanos.

– Você chora quando ouve Los Hermanos? – Perguntei assim que sentamos na parte externa da sorveteria.

– Não. Você sabe que eu não curto Los Hermanos, Roberto. – Você parecia estar achando isso tudo tão estranho quanto eu. – Por quê? Você chora?

– Não, não! – Ok. Mocinha-do-cabelo-curto-e-roupa-xadrez-e-paremos-os-estereotípos-por-aqui. Às vezes o silêncio poderia apenas calar.  – Eu só queria saber se você tava se traindo por aí.

– Te traindo? – Um olhar inquisidor me tomou o ar sem pedir licença. Eu não disse me traindo, disse? Droga.

– Er… Não quis dizer isso… Eu nem falei isso… – Parei de falar enquanto a risada dela ecoava da rua até os cantos mais obscuros da minha vergonha.

– Você não disse, Beto – disse ainda risonha, segurando minha mão –, só queria saber se você tava me traindo. – Você continuava rindo a medida que eu ruborizava.

A merda é que eu me traio e que ela, mude o que for, ainda tem algo de antes. Esse algo eu ainda não sei o que é e, para descobrir, tem que ser de mais perto, de onde o golpe é mais letal. Mas, não. Ela vai voltar praquele mundo do Jardim Botânico com a gente dela, a arte dela, a droga dela e todas as outras imagens das coisas que ela faz que eu não quero que terminem de se formar em minha mente.

– Vamos logo fazer o sorvete! – Seus dentes apresavam um sorriso de vitória que eu não sei como consigo gostar. Vai saber! É só um sorvete…

1 Comentário

  1. Tay said,

    junho 30, 2011 às 11:55 pm

    Nelma sempre me surpreende… dispensa comments. risos.


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